Ainda falando sobre necessidades, é fundamental trazermos Marshall Rosemberg para a discussão. Marshall é um psicólogo americano que desenvolveu uma abordagem chamada Comunicação Não Violenta (CNV) que, dentre diversos aspectos, explora o termo necessidades como aspectos de nosso bem-estar e postula que todas as nossas ações estão a serviço do cuidado dessas necessidades, ainda que não tenhamos consciência disso.
Alguns exemplos dessas necessidades: conforto, apoio, cuidado, compreensão, alimento, aprendizagem, mutualidade, empatia, amor, carinho, movimento, descanso, segurança, dentre outras. Perceba que são aspectos subjetivos, que precisam ser contextualizados para serem compreendidos. Longe de definir uma verdade, a ideia é ter alguns parâmetros de onde partir para buscar mais compreensão de si e do outro, das subjetividades de cada indivíduo.
Vamos olhar para essas necessidades num aspecto prático.
Pense em uma pessoa sentada à frente do computador lendo esse texto sobre Holarquia Pessoal. Quem sabe a pessoa seja você, né?
Talvez ela já estivesse sentada à frente do computador há pelo menos 1h30. De repente, ela começa a se ajeitar na cadeira, muda a posição do encosto, a altura do assento, e volta à leitura.
Pela perspectiva da CNV, quando essa pessoa se movimentou na cadeira ela poderia ter feito isso para cuidar da sua necessidade de conforto. Com as costas doendo e os pés formigando depois de 1h30 praticamente imóvel, percebeu a importância de se movimentar.
Se ela não se ajeitasse, possivelmente a dor poderia se acentuar, os pés formigarem ainda mais e seu nível de bem-estar ficaria cada vez menor. Então, a solução encontrada para cuidar de sua necessidade de conforto foi mexer na cadeira para melhorar a postura na qual estava sentada. Aí, ao regular a cadeira, percebeu seu corpo um tanto tenso, rígido, e resolveu fazer uma pausa de 15 minutos para fazer um alongamento.
Ao se alongar, ela estava cuidando de sua necessidade de movimento e saúde (pensando no bem-estar de seu corpo físico) e da necessidade de descanso (pensando no tempo que já estava focada naquela tarefa).
Tudo que fazemos é para cuidar de uma necessidade. Desde uma atividade mais simples e corriqueira (como descrito nesse exemplo), até escolhas mais aparentes, como a decisão por aceitar ou não um trabalho, por fazer determinada graduação, por escolher uma parceira ou parceiro na vida, almoçar salada ou uma feijoada, etc. Lembrando, de novo, que a percepção da satisfação das necessidades não é algo estático e fixo. Varia de pessoa para pessoa, de contexto para contexto.
Agora, voltemos à ideia lá do primeiro parágrafo do texto, sobre os nossos “temos que” de estimação. Se, num primeiro momento, não consciente do que é importante para mim, eu “tenho que manter esse trabalho, mesmo que eu não goste”, agora posso olhar sob uma outra perspectiva.
Eu ESCOLHO manter esse trabalho PORQUE percebo que, nesse momento, ele é a fonte de renda que tenho para cuidar da minha segurança financeira (ter dinheiro para pagar as contas no final do mês), conforto (ter um salário suficiente para morar num bairro de alto padrão) e conexão e amor (posso pagar as viagens ao exterior para visitar minha mãe que mora em outro país, 3 vezes ao ano).
Eu até poderia escolher outros trabalhos, mandar meus currículos, mas não me sinto seguro (diante de cenário econômico, crenças que tenho, etc) de trocar o certo, de um trabalho que já tenho durante 10 anos, por algo duvidoso. Então, eu fico onde estou, ainda que descuide da minha autonomia (pois o trabalho é presencial e não consigo mudar isso) e tranquilidade e respeito (trabalho com um gestor que se mostra inflexível e grosseiro).
Perceber que estamos escolhendo o tempo todo, apesar dos contextos, nos ajuda a ter o poder sobre nossas ações em nossas mãos, ainda que seja necessário enlutar que o contexto não é nada favorável e não temos energia, forças ou recursos, para fazer diferente.
Por último, e não menos importante, viver a partir de um lugar de escolha não significa dizer que a vida é meritocracia e viver a lógica do “se você quer, você consegue”. Pelo contrário. É uma forma de reconhecermos que sempre existe uma potência individual, que às vezes não conseguimos acessar diante do contexto em que estamos e, em última instância, percebermos que mudanças sistêmicas poderiam contribuir para que nosso caminho fosse mais suave, individual e coletivamente.
Trocando em miúdos, numa temática polêmica: tão importante quanto discursar que toda pessoa negra tem potência individual para chegar onde ela quiser, é também reconhecer que existe uma lógica social racista que contribui para que sua jornada seja mais pesada e dura. E, nesse caminho mais duro, muitos não conseguem acessar, ou sustentar, essa potência individual. Nesses casos, políticas afirmativas são parte da solução, se pensamos em bem-estar coletivo.